Abuso sexual infantil: uma história que não imaginamos

Descubra quais são os tipos de abusos sexuais infantis mais ignorados pelos pais com a psicóloga Paloma Wanny.

O atendimento infantil é uma área muito desafiadora para psicólogos. Alguns se veem limitados e intimidados, mas profissionalmente este campo sempre me interessou e é minha área de maior busca por conhecimento. Certamente trabalhar com vítimas de abuso sexual na infância é uma área exigente. Imaginar ouvir um relato contendo detalhes sobre um abuso sofrido causa compaixão, repulsa e até náusea.

Há alguns meses, fui procurada para atender uma criança que passou por esse delicado cenário. Antes de conhecer a criança, conversei com um dos cuidadores e este me relatou o que havia acontecido com o menor. Foi desejo mútuo entre mim e o cuidador em dividir esse relato para conscientização e minimização de casos. Sobre este relato há algo importante em ser compartilhado pois existem outras formas de abuso, das quais, às vezes, nem imaginamos.

“A cada 8 minutos uma criança é abusada no Brasil”.

Mas antes de contar essa história, gostaria de explicar o que é abuso sexual infantil. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o abuso é definido pelo envolvimento de uma criança com outro sujeito em condições superiores em qualquer atividade sexual da qual ela não tenha compreensão clara. O ato causa dano físico, psicológico e sexual sendo contra a vontade ou por consentimento adquirido por indução, coerção, compensação ou sedução.

Existem muitos alertas sobre abuso sexual infantil para famílias e crianças, e isso deve ser feito porque é necessário e importante. Porém, há outros tipos de abuso infantil que são menos tratados. São “abusos que não imaginamos” e acontecem quando uma revista pornográfica fica acessível à criança. Ocorre quando um adulto estranho ou com pouca intimidade está presente quando a criança troca de roupa e observa seu corpo causando constrangimento. Acontece também por meio de outra criança. Sim, crianças abusam crianças!

Sobre este último fato, trago um estudo de caso de uma criança de 7 anos para entendermos melhor. Compartilho aqui o ponto de vista de um dos cuidadores:

Como desconfiou do abuso sofrido pela criança?

Há um ano apresentou mudanças bruscas de comportamento, como nervosismo, choro sem motivo aparente e falta de sono. Em alguns momentos não queria ir de shorts para a escola, só queria usar calça ou pedia para apertar muito o cordão da roupa. Chegava a pedir para ir de cinto. Neste período buscamos atendimento psicológico e orientação no posto de saúde da cidade, mas não obtivemos retorno positivo. Eu sabia que algo estava errado, haviam demonstrações, eu só não conseguia identificar o que era. A certeza veio quando tentou abusar do irmão mais novo.

Esta é uma demonstração clara de que algo não vai bem pela mudança brusca do comportamento. O gatilho está em buscar entender o porque dessa mudança de comportamento. O que tem levado a criança a alterar seu modo de agir. 

Como foi saber que isso não aconteceu por um adulto, mas por uma outra criança? Já tinha imaginado ou ouvido algo do tipo?

O sentimento foi de confusão, pois se fosse um adulto poderia ir atrás de justiça ou sentir raiva porque é alguém que sabe o que está fazendo. Mas sabendo que era uma outra criança senti dó. Não é possível saber o que o levou a fazer isso, nem que atitudes a família tomou. Sempre estive atenta com o olhar de outros adultos para crianças, mas nunca pensei em uma criança abusar de outra.

Já havia alertado seus filhos sobre isso?

Sempre falei com meus filhos sobre isso, principalmente com a menina mais velha, orientando que “não pode deixar mexer aqui”, mas nunca foi algo mais profundo. Tive que ter essa conversa depois do ocorrido. Às vezes, temos medo de falar sobre isso com crianças pensando que estamos protegendo ou poupando-as, mas eles têm perfeita capacidade de nos entender.

É importante pensar nessa última frase pois, até que ponto estamos, de fato, protegendo as crianças privando-as de informações de extrema importância para sua vida? O diálogo deve ser aberto para que exista troca de informações entre ambos os lados.

Como foi a conversa com a criança e como foi sua reação?

Todas as tentativas anteriores de conversa não haviam tido sucesso, pois sempre fugia do assunto. Mas no dia da tentativa de abuso do irmão não havia para onde correr. A conversa foi muito pesada, difícil de ouvir e difícil de falar algo. O sentimento de culpa ainda me sonda. Eu o acolhi, o abracei, disse que não havia sido sua culpa e que juntos resolveríamos tudo.

Dialógo fundamental 

A criança deste relato continua em acompanhamento psicológico e muitos danos foram reparados. O diálogo é fundamental para garantir proximidade e a confiança da criança, de modo que qualquer situação anormal possa ser relatada.

“80% dos casos acontecem em ambientes familiares”.

Para a OMS, esta é a violência mais avassaladora em termos de desenvolvimento. Segundo um levantamento de 2014 da organização, em termos mundiais, uma a cada cinco mulheres e um a cada 13 homens passaram pela vivência do abuso sexual na infância ou adolescência. Em alguns casos isso gera o ciclo do abuso. O ciclo do abuso ocorre quando uma vítima se torna um abusador, de acordo com a psicóloga e psicanalista Francieli Sufredini.

Metaforicamente, é habitual ao nosso corpo reagir e gritar se a boca não fala. As crianças são mestres em nos dar sinais, cabe a nós, adultos, nos especializarmos em entendê-los. Os sinais podem ser condutas agressivas e auto agressivas, ansiedade, medo, alteração nas atividades fecais, enurese, surgimento de sexualização exacerbada, perturbações no sono, distúrbios na alimentação, dificuldade de andar, regressão à comportamentos infantis, aversão ao contato físico, desenhos com riqueza de detalhes genitais, conduta sedutora, interesse precoce por brincadeiras sexuais e/ou erotizadas, piadas, histórias e músicas incompatíveis com a faixa etária, envolvimento com drogas, entre muitos outros.

“São em relações próximas que ocorrem os casos com maior gravidade e frequência”.

Ao constatar qualquer mudança repentina, alarmante e, sobretudo, se tiver suspeita de algo, tenha um diálogo aberto, oferecendo segurança e acolhimento à criança. Escolha um local confortável, evite falar perto de estranhos ou pessoas pouco íntimas dela. Faça perguntas com o vocabulário claro e compreensível a ela, por exemplo, “alguém tocou em você?”. Não crie pré-julgamentos, não culpe a criança ou se culpe. Seja paciente ao ouvi-la e tranquilize-a. Ouça e acredite nela! A confiança adquirida e o diálogo são as chaves para obter as respostas necessárias.

Às vezes, o abuso pode ser contraditório pra criança por oferecer algum tipo de compensação. O ato sexual causa prazer por menor que seja a idade, o que causa confusão nos sentimentos e faz a criança pensar coisas como “se não posso contar, por que é bom?”. Ainda segundo a especialista Francieli, as mudanças surgem quando o prazer se torna uma obrigação por parte dela, gera medo e atravessa o limite do cuidado para a violência.

Ao certificar que houve abuso, procure ajuda, acompanhamento médico e psicológico. A denúncia é necessária! Independente de quem é o abusador, seja ele um desconhecido ou familiar. Converse com as autoridades caso você tema pela segurança da criança e pela sua. O Conselho Tutelar deve ser procurado.

Denúncias podem ser feitas pelo Disque 100 ou através do APP Proteja Brasil. É possível converter um ato de violência em um ato de amor.

Paloma Wanny (CRP 06/144700) é psicóloga e atende, especialmente, crianças. Acompanhe seu trabalho em @psipalomawanny

Fontes:
http://www.turminha.mpf.mp.br/direitos-das-criancas/18-de-maio/copy_of_a-lei-garante-a-protecao-contra-o-abuso-e-a-exploracao-sexual
http://www.capitalnews.com.br/cotidiano/maio-laranja-foi-de-alerta-para-alto-indice-de-abuso-sexual-no-pais/329896
https://oglobo.globo.com/sociedade/ministerio-dos-direitos-humanos-conclui-que-quase-90-da-violencia-sexual-contra-criancas-acontece-no-ambiente-familiar-23665391
http://projetonova.com/infancia-um-grito-de-socorro/
Alguns aspectos sobre o abuso sexual contra crianças. 
Abuso sexual infanto-juvenil na perspectiva das mães: uma revisão sistemática.

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